Vidas em contos

(por Rita Prates)

Tá lá um corpo estendido no chão

Tá lá um corpo estendido no chão…

Corpo jovem e belo de um rapaz cuja cabeça esmigalhada deixava à vista pedaços do crânio. Emoções rolavam pela terra, sonhos esfacelados, futuro perdido na mira de um revólver.

Jovem pai jurado de vingança por uma fraqueza infeliz. Bateu sim, bateu na mulher, mas ela era dele desde os onze anos. Linda, mesmo tendo três filhos, seu corpo era belo. Aos doze anos já era mãe, não entendia nada daquilo, foi surpreendida com a primeira barrigada, depois a outra e por fim mais uma. Hoje, com dezoito anos é uma jovem mãe com seus três filhos. Parecem irmãos. É responsável, ama-os muito, assim como ao marido.

Era briga de casal, nunca havia levantado a mão para ela, doeu nele tanto quanto nela, mas prometeu que jamais repetiria atitude tão calhorda. Ela o perdoou, mas a irmã ficou indignada e foi tomar satisfação. Agrediu-o com palavras rudes e por fim acertou-lhe uma vassourada na testa. Levou de volta a vassourada, para não enfiar o bedelho onde não deveria.

Pronto, armou-se a confusão, o namorado da cunhada jurou-o de morte e ficou de acertar-lhe um tiro logo que topassem de frente. Topou, não com ele, mas com a polícia. Preso contou seu caso para o companheiro de cela, que prometeu ajudá-lo a liquidar o abusado. Tentou fugir e foi morto. Alívio geral no morro, não prestava, não valia nada.

Após um ano, nova fuga na penitenciária, o companheiro de cela vem cumprir o prometido. Andam em grupo, três fugitivos perigosos e vingativos. Armou a emboscada. Um veio pela rua atirando contra o jovem e o outro, à surdina, pulando de telhado em telhado, mirou-o bem na cabeça e deu-lhe um tiro certeiro.

Tá lá um corpo estendido no chão.

Tá lá uma jovem chorando, debruçada sobre o corpo do marido. Suas mãos tentam alcançar os restos do cérebro espalhados pelo chão. Colhem desejos, sonhos de construírem uma casinha bem longe daquele inferno, de terem mais um filho homem, de se amarem na praia, de conhecerem a neve.

A guerra estava travada, os irmãos do jovem baleado juram vingança. Matariam os três assassinos e também a mulher que foi a causadora de toda aquela desgraça.

Para ela tudo bem, podem vingar a irmã. Perdeu o que havia de melhor em sua vida, o seu amor, o seu companheiro de pagode, de dançarem na chuva pelos becos da favela, de fazerem amor com um fogo que não se apagava. Perdeu o pai de seus filhos, brincalhão, que mais parecia um filho mais velho de tanta bagunça que aprontava, precisava ralhar para se quietar.

Domingo de sol quente, descem todos para a festa na quadra de futebol, é um show de forró promovido por um vereador que se elegeu graças à maioria dos votos do morro. Cachaça à vontade e muito bate-coxa.

Na virada do beco sobem os dois fugitivos, topam cara a cara com um bando armado, vinham atirando. Chegara à hora de vingarem o irmão. Descem em disparada, seguem na direção dos prédios aos pés da favela. Tiros voam pelo ar, disparos fortes, sons temidos, normais no alto do morro, mas agora invadem prédios deixando todos em pânico. Quem passa pela rua não sabe o que fazer; correr ou chorar. Lá em cima todos já aprenderam a deitar-se no chão e rolar até entrar na primeira porta que se abrir.

Pânico geral, os bandidos correm pela avenida com toda garra e violência assustando os incrédulos, que jamais imaginariam tamanha ousadia. Tiroteio no asfalto só acontece lá pelas bandas do Rio. Aqui o povo é mais civilizado, mas agora a realidade é outra. Estão invadindo a parte nobre do bairro, trazem tiros, sangue e desespero.

Alguém do bando consegue acertar um na cabeça, igualzinho ao jovem irmão. O outro foi mais esperto, mas um tiro o pegou pelas costas, antes de se esconder atrás de um carro. Levou mais alguns, para terem certeza que do chão não se levantaria mais.

Fogos de artifício explodem no céu, sinal de que cumpriram parte da vingança. Os moradores ficam sabendo que o aviso é sobre a morte dos dois marginais, são como sinais de fumaça, passam informações pelo ar. Os irmãos estão cumprindo a promessa feita, dois já foram liquidados, só resta o mais odiado por todos.

Falta um assassino, sanguinário, maldoso, temido pela maioria da favela. É o pior deles, talvez de todo o morro. Quando passa pelos becos todos abaixam a cabeça com medo de olhar naqueles olhos vermelhos, frios, distantes, vingativos.

Homens que nunca tiveram medo ficam receosos de seus rompantes, as mulheres ficam apavoradas com a ideia de serem assediadas e as crianças de serem maltratadas. Desde os dez anos ele carrega corpos nas costas, e hoje, com dezenove anos, parece um ser errante, assustador e perverso.

Chulé, “o rei da faca ninja”, levava consigo uma faca afiada que havia roubado de um colecionador. Quando acabava de atirar na sua vítima, perfurava-a com a ninja, cortava as mãos, braços e, às vezes, a barriga. Expunha as vísceras do coitado, para que todos sentissem o seu poder e a sua maldade. Essas pobres criaturas, algumas ainda vivas, agonizavam esvaindo-se em sangue, para o prazer do matador.

Perdeu a ninja quando foi pego roubando uma casa. Fez refém um casal de idosos, passou o dia inteiro com a faca no pescoço do velho ameaçando-o de morte, caso a polícia não o deixasse fugir. Tensão e medo na família dos velhinhos, porém, o malandro resolveu se entregar. Sabia que não sairia vivo se perfurasse o refém. Não foi por medo ou por pena, foi pela sobrevivência. O pior de tudo é que perdeu a sua companheira de todas as horas, a sua inseparável ninja.

Esperto, sabia que fugiria na primeira oportunidade. Assim o fez. Teve que se refugiar naquele morro.  Ficou na casa da tia, pois tinha que cumprir a promessa que fizera ao companheiro de cela de matar o jovem, palavra de bandido é sagrada.

Antes de matar o rapaz, provou o sabor de carregar a acusação por ter estuprado uma jovem e a matado com pedradas. Não passava pela sua cabeça matá-la. Poderia usá-la mais vezes, porém a tola jurou contar para o noivo que havia sido abusada por ele, chamou-o de animal asqueroso e cuspiu em sua cara.

Sentiu ódio por ser tão feio, de não atrair o amor de uma mulher e, sim, asco. Silêncio absoluto. Quem viu algo contou para poucos. Vira os dois subindo o morro em direção ao matagal, ele a segurava pelo braço, enquanto ela conversava sem parar, talvez implorando que a deixasse em liberdade, suplicando pela sua vida. A polícia jamais conseguiu achar o criminoso. Silêncio absoluto, quem contasse teria morte certa.

Chulé anda solto pelos quatro cantos amedrontando todos com o seu olhar maligno. Jurou acertar os irmãos com a sua arma, e também aos que participaram da comemoração pela morte dos seus companheiros.

Apreensão no morro. Temerosos, muitos andam armados esperando a primeira oportunidade para o matarem. Ele jura que antes leva alguns consigo. O que todos querem é que chegue logo o dia em que alguém grite:

– Tá lá o corpo “do Chulé” estendido no chão.

 

 

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Publicado em 9 de dezembro de 2016 por e marcado .