Vidas em contos

(por Rita Prates)

Vida oculta

Andrey seguia a passos firmes nos seus setenta anos, porém tranquilo. De poucas palavras, reservado, se contentava em ter apenas quatro amigos em quem confiar. Cumprimentava com um abano de cabeça os poucos vizinhos do seu prédio. Literalmente o prédio era dele, um não, dois prédios no mesmo quarteirão. 

Filho único cuidou dos pais com extrema dedicação até eles falecerem, e recebeu os prédios como parte de sua gorda herança. Solteirão e apaixonado pela sua amiga inquilina de longas datas. Nunca teve coragem de declarar o seu amor a ela, segundo afirmam alguns observadores de paixões alheias.

Escolhia a dedos quem iria morar nos prédios. Tinha que ser uma pessoa de boa índole. Os inquilinos pagavam um aluguel irrisório, e alguns viviam ali há mais de quarenta anos. Para ele o que importava era a integridade das pessoas. Gostava dos moradores porque eram discretos, não bisbilhotavam e nem invadiam o espaço do outro.

Sistemático, nunca convidou ninguém para visitá-lo em seus apartamentos. Isso mesmo, ele morava em dois apartamentos que estavam com as janelas sempre fechadas para a rua e para o mundo.

Em plena covid, Andrey foi diagnosticado com câncer. Contou só para um amigo próximo, que o amparou durante todo o tratamento. Porém a doença o venceu e, com a pandemia, o funeral foi como ele, silencioso e restrito.

O testamento do velho solitário surpreendeu a todos. Repartiu o seu patrimônio entre os três amigos inquilinos de longa data e com a sua paixão platônica. Dinheiro, prédios e barcos de luxo constavam no inventário, porém o que mais deixou os herdeiros surpreendidos foi com o Andrey oculto, que foi se revelando a cada nova descoberta.

Durante anos, Andrey convidava os futuros herdeiros para navegarem em seu modesto barco. Amava velejar com os amigos, pois era sobre as ondas que ele se descontraia e se mostrava feliz. Porém, quando os herdeiros chegaram no cais para avaliarem o que fazer com o barco de Andrey, foram surpreendidos com a revelação de que ele tinha mais nove barcos, alguns de luxo.

 Andrey tinha paixão por barcos. Segundo os diversos empregados que cuidavam da frota, ele não poupava gastos ao convidar centenas de alegres e festeiros amigos para velejarem. Pescavam, faziam festas, churrascos e muita cantaria noite a dentro. Os barcos estavam bem conservados, decorados com extremo bom gosto e requinte. 

Ficaram embasbacados com o que ouviam sobre esse outro Andrey que não conheciam. Não conseguiam associar o introvertido e comedido proprietário dos prédios com o homem sociável cercado de tantos amigos e luxo.

Quando os herdeiros receberam autorização para entrarem nos apartamentos de Andrey, tiveram uma nova surpresa. O proprietário discreto, simples na aparência e nos gastos, revelava-se um homem com transtorno de acumulação.

Os cômodos estavam lotados de jornais e revistas velhas; aparelhos estragados e muitos novos ainda nas caixas; livros; discos; CDs e coisas guardadas há mais de décadas em desuso.

Nos armários e em cima das camas havia muitas peças de roupas iguais e de cores variadas, camisas e calças ainda com etiquetas. Sapatos, botas e chinelos usados espalhados pelo chão, e muitos ainda sem uso. O mesmo se deu com produtos de higiene pessoal que já haviam passado de validade.

Em um quarto tinha caixas e mais caixas de brinquedos. Lembraram que Andrey sempre comprava brinquedos em promoção durante todo o ano. No Natal, ele se vestia de Papai Noel e distribuía os brinquedos para a criançada nas creches e hospitais.

Encontraram também quadros de artistas de renome pendurados nas paredes, inclusive nos corredores, e outros tantos quadros e peças de decoração ainda embalados. Perplexos, teriam que designar um profissional para avaliar aquele rico achado.

Ficaram impressionados com as centenas de objetos guardados em quantidades inacreditáveis. Lembraram dos relatos de Andrey sobre as dificuldades dos pais para sobreviverem, quando tiveram que fugir da Europa em guerra e iniciarem uma nova vida.

O que foi possível, doaram para as instituições de caridade. Os moradores do prédio ficaram boquiabertos quando viram a quantidade de entulhos sendo transportados por três caminhões lotados.  

Outras surpresas os aguardavam na lavanderia dos prédios. Em uma encontraram uma máquina de lavar estragada e dentro dela 300 dólares em moedas. Na outra lavanderia encontraram em um cômodo fechado com três mil dólares em quatro barris cheios de moedas.

Andrey escondia um segredo que os amigos fingiam desconhecer. Quando Andrey descobria que algum conhecido estava em dificuldade financeira, ele, de forma sigilosa, enviava um bilhete anônimo avisando onde tinha deixado o dinheiro.  

Quando fez um ano de falecimento de Andrey, os amigos resolveram fazer uma homenagem a ele, para mostrarem o quanto o consideravam. A igreja estava lotada e no alto da escadaria avistava o retrato Andrey cercado de flores. As pessoas se posicionavam ao lado da foto e falavam sobre ele, contavam caso, outros o agradeciam pela amizade e pela generosidade. 

De repente parecia que falavam de dois Andrey, o que provocou questionamentos: 

– Quem era esse Andrey que dividiu a sua rica herança com os amigos mais próximos, dando-lhes uma velhice rica e confortável jamais imaginada?

– Quem era esse Andrey que foi elogiado, aplaudido e lembrado com emoção pelos amigos do homem solitário, reservado e generoso?

– Quem era esse Andrey que foi aplaudido e lembrado por dezenas de amigos, que fizeram questão de contar casos divertidos de um Andrey alegre e extrovertido, que adorava velejar?

– Quem era esse Andrey que surpreendeu a todos ao ser descrito de forma distinta, dando a impressão de dois homens em um só?

Um indivíduo pediu a palavra, citou Philip D. Stanhope e foi aplaudido de pé. 

“Existem certas ocasiões em que um homem tem de revelar metade do seu segredo para manter oculto o resto.” 

– Esse é o nosso Andrey.

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Informação

Publicado em 27 de setembro de 2022 por .