Vidas em contos

(por Rita Prates)

A herança prometida

Tudo começou com uma promessa. – Quando eu morrer deixarei um presente valioso para vocês dentro de um dos meus quatro pianos. Dizia o tio Bento para cada sobrinho que o paparicava.

O tio adorava tocar, e como tocava mal! Quando cismava de se apresentar para a família era desesperador. Aplaudiam por educação e por interesse, queriam agradar o tio milionário. Ele se esbaldava, gostava de ouvir o som descompassado do piano.

Conhecia suas limitações, mas não se importava, pois tinha sempre um público familiar que o aplaudia. Ele inventava partituras e falava que valiam ouro. Bento se deliciava de ver as caras e bocas elogiando-o pela sua “ótima” atuação como pianista.

Solteirão, discreto, nunca apresentou uma namorada para a família. Era um mistério em relação a mulheres. Alguns até duvidavam de sua masculinidade. Divertia com as fofocas alheias, perto de quem duvidava dele como homem, soltava a franga e agia como uma tonta. Desfavorecido de beleza, era assediado por mulheres jovens e famintas por um pedaço da herança.

Dono de fazendas de café e empresas de agronegócios, estava sempre a viajar. Quando retornava vinha com os bolsos cheios, distribuía brindes de suas indústrias aos interesseiros que faziam contas de quanto cada um herdaria do rico solteirão. Tio Bento falava aos parentes, com ar de mistério, que quando morresse deixaria para eles ótimos dividendos.

A saúde do tio milionário era monitorada pelos familiares. – Fuma muito, morrerá de câncer de pulmão, dizia a irmã. – Bebe muito, morrerá de cirrose, dizia o sobrinho. – É muito distraído no volante, morrerá em um acidente de carro. Falavam, torciam e nada acontecia. O homem era um touro duro na queda. Saúde perfeita e de ótimo humor.

Aos setenta anos sofreu um enfarto fulminante quando sobrevoava de jatinho uma de suas fazendas. A notícia de seu falecimento deixou todos em estado de euforia. Finalmente poderiam por as mãos na fortuna do tio solteirão.

Quando foram acertar o enterro, estava tudo pago pelo tio Bento, o gozador. Encomendou o caixão, cachaça, salgados e uma banda de música, pois queria um funeral alegre e cheio de boas surpresas.

Deixou uma ordem por escrito para ser enterrado dois dias após o seu falecimento. Desejava que os parentes distantes pudessem participar do velório. A parentada compareceu em bloco para ver finalmente o tio debaixo da terra.

O dia do funeral mais parecia uma festa, e o comentário geral era a fortuna deixada pelo empresário. No meio da manhã apareceram três mulheres que cercaram o caixão cantando músicas que o tio Bento gostava. Pegos de surpresa, a multidão calou, mas logo após passaram a cantar com elas.

Ao terminarem a cantoria, os presentes viram atravessaram o salão cinco jovens de idades que variavam de dez a trinta anos. Cada um trazia em suas mãos velas coloridas e acessas. Depois beijaram o defunto no rosto e se postaram entre as mulheres. Os parentes comentavam que até morto o tio Bento era excêntrico, gostava de aparecer.

A mais velha das mulheres pediu a palavra para falar sobre o quanto o falecido representava para todos. Elogiou a inteligência do morto, sua generosidade e o eterno bom humor. Finalizou dizendo que ele tinha deixado um legado de riqueza incalculável, ou seja, os filhos ali presentes.

Parecia que uma bomba havia explodido no salão. Vozes alteradas de espanto ouviam-se aos quatro cantos. O burburinho invadiu o ar e escorreu porta afora, como um vendaval sacudindo os presentes e estremecendo os parentes de raiva e indignação. O padre resolveu por ordem no tumulto quando viu um dos irmãos do tio Bento partir aos berros para cima da mulher, acusando-a de mentirosa e trambiqueira.

Quando o padre conseguiu diminuir a chama da ira e afastar os incendiários, pediu explicações à mulher. Ela resumidamente falou que o falecido se relacionou com as três mulheres ali presentes e os jovens eram os filhos do Bento.

Contou que há anos Bento exigiu que fosse feito um pacto de silêncio e segredo entre eles. Disse que as mulheres e os filhos trabalham nas empresas do falecido e uma vez ao ano passam as férias juntos. 

Relatou que Bento sabia que tinha um problema grave de coração. Havia combinado com as mulheres e aos filhos como seria a homenagem a ele no dia do funeral, pois tinha prometido aos familiares e amigos que iria surpreendê-los quando morresse, e não queria decepcioná-los.

De repente ouvem uma voz de um homem que ergue um copo de cachaça e pede um brinde ao genial Bento pela surpreendente revelação guardada a sete chaves. 

Os parentes sentiram-se lesados após anos e anos de bajulação. Até hoje a pequena cidade do interior comenta entre risos o enterro do tio milionário, e da decepção da família que recebeu de herança apenas os quatro pianos prometidos com as partituras dentro rabiscadas a lápis.

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Publicado em 28 de outubro de 2022 por .