Vidas em contos

(por Rita Prates)

Quando a força espiritual supera todos os obstáculos

Mariazinha me telefonou querendo saber notícias. Sempre que falamos ao telefone esquecemos da hora, conversamos sobre a família, espiritismo que é o forte dela, e das lembranças que nos acompanham como um vício difícil de afastar.

Mariazinha é mais que uma prima, é uma irmã de alma. Nutrimos uma amizade construída em meios a risos, afetos e uma força sobrenatural que só ela sabe carregar. Estatura mediana, magra, olhos verdes, pintinhas salientes espalhadas pela face e um sorriso constante que faz dessa mulher de 77 anos um modelo de fé.

Quem a vê não acredita que já retirou um rim, ovários, útero e um órgão a mais que não me lembro. Ela se faz de peralta e alega que está faltando algumas peças do seu corpo original, mas o oco não a atrapalha de seguir vivendo.

Antes da pandemia disseram-lhe que estava com um novo câncer no pulmão, mas cá entre nós, nunca deixou de fumar, mesmo passando perrengues bateu o pé e afirmou que morreria com o seu pito nos lábios.

Pensou, repensou, fez contas e chegou à conclusão que não faria a quimioterapia e nem a radioterapia. Sabe que as chances são poucas de se curar, então resolveu abrir mão dos tratamentos, só usaria remédios indicados e os para as dores que sempre a acompanharam depois da retirada dos órgãos.

Desde do último diagnóstico controla a dor como se controla um carro em movimento. Quando a dor acelera pisa no freio e o estaciona. Fica parada uns dias tomando remédios fortes que a deixa sonolenta e também acalma as fincadas despertas. Conforme definiu, as dores são como facas abrindo passagem pela carne. A faca vai girando e expelindo chamas, como se fosse um dragão em fúria circulando pelo seu corpo fragilizado, cheio de remendos bordados na carne.

Passada a turbulência, liga novamente o carro, acelera com cuidado e vai ganhando aos poucos mais tempo para circular por esse mundão contaminado de vírus.  Não tem medo da morte. Acredita na sua fé, que a faz ganhar dias a mais com os filhos. Espírita fervorosa, afirma que saberá quando irá partir. Diz que na hora do desligamento estará sóbria e tranquila quando for levada pelas entidades.

Na última vez em que conversamos, eu perguntei mais sobre a sua mãe, irmã da minha. Acredito que a sua força e fé veio de tia Lígia. Em um rompante de curiosidade, eu quis saber sobre como a mãe dela sobreviveu quando se separou aos vinte oito anos do marido, com quatro filhos, sendo que Mariazinha tinha um ano e meio.

Era década de cinquenta, época super machista, mas tia seguiu firme. Ficou com uma fazenda no interior de Minas. Teve que assumir o comando e fazer dali o sustento da família. A fazenda tinha que ser auto sustentável. Sem dinheiro para as despesas só compravam sal e açúcar. Tudo de comer era plantado e colhido com o trabalho da família. Todos tinham funções, todos levantavam cedo para ir para a escola e depois trabalhar.

O filho que bancava o valente e a confrontava, recebia o castigo imediato. Com o tempo aprendeu a fazer de tudo para sobreviver; plantar, colher, comprar gado, vender, fazer parcerias. Soube se impor como uma fazendeira respeitada e admirada na região.

O ex marido seguiu fazendo mais seis filhos em uma mulher e mais sete em outra. A última o ameaçou matar caso ele a largasse. Em seu leito de morte quis ver os filhos. Quase todos os abandonados se negaram, visto que ele jamais os havia procurado. Na hora do adeus final, quando a consciência pesou, ficou com medo da punição no além e apelou pela salvação.

A tia quis ser feliz novamente, quis amar e ser amada. Dessa nova relação teve mais um filho que completou a prole. Porém teve que carregar o fardo da ignorância e da discriminação das pessoas da época, que viam com maus olhos a mulher divorciada. Firme, nunca se rendeu aos comentários maliciosos, e de cabeça erguida enfrentou a todos com altivez e coragem.

Com os filhos adolescentes mudou-se para a capital. Investiu nos jovens para que se graduassem e seguissem os seus destinos. Já idosa, espírita fervorosa, faleceu nos braços da filha que a ninava enquanto os espíritos a libertavam da vida terrena. Tia Lígia e Mariazinha simbolizam para mim energia, uma força interna que me impressiona, que me faz acreditar em algo maior, acima das nossas limitações.

Conheço pessoas que adoeceram, que não se fortaleceram espiritualmente para superar os obstáculos que surgiam. Fracas de fé e de esperança se desesperavam e partiam, muitas vezes antes da hora. Com Mariazinha eu vi que a fé e a esperança ultrapassam todas a barreiras, inclusive garantindo o direito de ficar mais tempo na terra.

Eu não conheço ninguém que tenha uma força espiritual maior do que a de Mariazinha. A admiro pela sua forma de encarar as doenças que lhe enfraquecem o corpo, mas que lhe fortalece a alma e a deixa mais leve e inabalável.

A vida e a morte fazem parte do seu dia a dia, cochicham ao seu ouvido, mas ela pouco lhes dá atenção. Quer seguir com equilíbrio, e se fortalece lendo os seus livros espíritas. Vejo em seu sorriso e na sua fala serena, que o transitar entre sombras e os espíritos a faz mais segura e confiante em encarar um novo despertar.

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Publicado em 5 de junho de 2023 por .